quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Éramos, no 6.º ano, cerca de 16 raparigas. Entre os namoricos e as modas, as conversas apenas direccionavam para um sentido: "o que cada uma queria fazer quando terminássemos o 6.º ano".
Numa aldeia tão pequena como a nossa, onde quase todos somos aparentados, as aspirações terminavam com o casamento, com filhos, com casa e pouco mais. Parecia que a interioridade da aldeia, moldava a capacidade de aspirar algo mais, de ambicionar qualquer coisa que não fosse um marido.
Apesar de entrar na conversa, poucas ideias conseguia dar.
Sim, pensava um dia namorar. Sim, pensava um dia casar. Sim, pensava um dia ter filhos. Mas não nesta altura.
E a conversa era sempre muito animada, com valentes gargalhadas, quando começavam a falar nos vestidos de noiva, na noite de núpcias, tema geralmente proibido no seio familiar.
E claro, tão certo como cada futuro que cada um cozinhava e alinhavava para si, quase todas seguiram o mesmo caminho.
Entre os dias que lhes parecem todos iguais, entre a pequenez do seu grande mundo, ali andam elas na sua labuta. Paramos às vezes nas ruas para sabermos como vamos, como vão os filhos. Filhos estes já com 15 ou 16 anos...
Às vezes, surpreendem-me com o entusiasmo com que cada uma fala, com o orgulho que dizem que terminaram um curso, depois vão para o desemprego uns tempos até haver para aí outro curso qualquer. Fazem umas temporadas na apanha dos morangos, da uva e da azeitona. As mãos calejadas do rigor do tempo, ajeitam os cabelos já a mostrar alguns brancos.
E uma vez por outra, lá me junto a elas no café. A conversa poderá variar entre telemóveis, entre plasmas ou LCD's, entre arrendamento de um apartamento em Monte Gordo ou de uma casa para poderem assar sardinhas, entre a roupa que compraram na única loja que a aldeia tem e que as faz andar todas de igual ou o assunto das novelas que a tvi ou a sic transmitem. Isto entre a disposição do cigarro nos dedos, que mostra a quem entra, sinal de independência, de maturidade, de mulher adulta.
Entre o meu silêncio, o beber do café, lá dou um sorriso e aceno a cabeça e tento compreender aquela linguagem. Uma linguagem que compreendia da minha avó e das pessoas da idade dela. E às vezes quando me pedem opinião, lá lhes digo que têm muito mais prática que eu e que as fico a ouvir.
E muitas vezes, quando tento falar um pouco a minha linguagem, fazem silêncio. E consigo perceber pelas suas caras que não se silenciam por me estarem a compreender, apenas porque naquelas cabeças lhes passa tantas coisas, como "que raio tenho eu com isso?"... e prefiro, então, mudar de assunto.
Mas são estas mulheres de hoje, as meninas de ontem, que apesar da sua linguagem simples, me dizem tanto. As mulheres de hoje que entram para as estatísticas de desempregadas a meio tempo, ora estão meio tempo em cursos, ora estão meio tempo desempregadas. São estas mulheres que conseguem dissecar melhor um telemóvel que qualquer técnico de uma loja de vendas. São estas mulheres que enchem os cafés, de cigarro na mão, há espera de coisa nenhuma, com um presente remediado e um futuro que se há-de arranjar.

6 comentários:

Vício disse...

já pensaste na sorte delas? nem precisam preocupar-se com a cor da graxa... :P

najla disse...

Realmente tens razão....é sorte mesmo! E são felizes assim, sem muitas preocupações, sem muitas ambições.
Mas acredita que eu também não preciso preocupar-me com a cor...mas que gostava de saber, ai isso gostava! eheheheh

entremares disse...

Pequeno almoço no Café Central

Não há cidade, vila, aldeia ou lugarejo que não ostente um “Café Central”.

É claro que isto não quer dizer que o café se localize na rua central, mas também ninguém se importa muito com isso. Aliás, aquele Café Central em especial localizava-se na Rua do Cabrito, e possuia ainda uma porta lateral para o beco das freiras ( vá lá saber-se porquê ).
A pequena vila de Formosinho sobressaía naturalmente de entre as povoações vizinhas pelos nomes, sempre prosaicos, que ostentava nas ruas, praças, becos e jardins, autênticas pérolas da imaginação do século pasado. Assim, a Igreja situava-se na Praça da Liberdade ( antes da Liberdade era só Praça, a Liberdade veio depois ), o Mercado Municipal estendia-se pelo Rossio dos Degolados e o edificio dos Correios, ex-libris arquitectónico de Formosinho, ocupava grande parte da Rua dos Pés-Curtos. O beco das Freiras, já referido, corresponderia ao portão traseiro de um convento, entretanto já desaparecido, mas cujo norme perdurara ao longo dos anos...
Mas este Café Central, de nome tão comum, era verdadeiramente incomum, insólito mesmo, diríamos.
O sr. Aparício Anunciação ( carinhosamente dois ás, para os amigos e clientes ) decidira transformar radicalmente todo o espaço interior, aquando da entrada em vigor da lei que proibia o acto de fumar no interior dos estabelecimentos comerciais ( o seu café incluido, pois claro ).
Assim, o Café Central de Formosinho era o único estabelecimento de restauração que possuia uma sala para os não fumadores, uma sala para ex-fumadores, uma sala para fumadores de cigarros, outra sala reservada para fumadores de cachimbo, ainda uma outra para os fumadores de cigarrilhas e charutos, e ainda um espaço mais pequeno, junto ao jardim, para os fumadores-em-vias-de-largar-o-vicio-de-fumar.
Ou seja, como é fácil de perceber, o Café Central, para além de central era... grande.
O sr. Aparício já aparecera até na televisão, como figurante num anúncio de uma conhecida marca de cafés;e, naquele dia, podia dar-se por feliz – tinha a casa cheia, o que em tempos de crise, era sempre uma boa noticia.
Para ser totalmente preciso, não era bem casa cheia. Mas tinha reparado que entrara pelo menos um cliente para cada uma das salas, era quase como se fosse...
Passou as mãos pelo avental imaculadamente branco e acabou de arrumar a bandeja com o consumo das mesas; tinha muitos cafés, alguns bolos, chás e uns salgadinhos para distribuir pelos seus clientes.
Por questões de proximidade, o percurso era sempre o mesmo; começava pela sala dos não fumadores, depois pela sala dos ex-fumadores, atravessava o corredor e servia a sala das cigarrilhas e dos charrutos, depois a sala dos cachimbos ( nunca se conseguiria habituar áquele cheiro ) e finalmente a sala dos fumadores “normais”. Já de saída, ainda passaria pelo cantinho dos indecisos-que-queriam-deixar-de-fumar, mas só para entregar o troco de um pequeno-almoço.

(continua...)

Rolando Palma disse...

Na primeira sala, a D. Hortense era já cliente habitual de há muitos anos. Invariávelmente bebericava um chá de camomila acompanhado por um pastel de nata – pouco queimado – ele já sabia.
- Bons dia, D. Hortense – e seguiu o seu percurso habitual.
Os ex-fumadores eram habitualmente clientes esquisitos, se é que lhe era permitido utilizar tal termo. Era raro o dia em que não lhe devolviam qualquer coisa, ou que protestavam por o galão estar escuro demais, claro demais, quente demais ou qualquer outra coisa, a mais ou a menos, mas nunca a preceito. Enfim, vá lá perceber-se as pessoas...
Suspirou para dentro. Entregou ao único cliente da sala o café bem forte e os dois salgadinhos e saiu disparado para o corredor, rumo ao santuário das cigarrilhas e charutos.
Naquele dia, quatro clientes, e todos eles já habituais. Simpatizava em particular com o velho major, apesar da falta de ouvido que o obrigava a repetir as coisas, sempre que lhe dirigia a palavra. De resto, a doutora farmacêutica – não lhe sabia o nome – emigrara recentemente da sala dos cigarros e convertera-se às cigarrilhas, tal como o sr. Alberto Pádua, o cidadão mais ilustre de Formosinho, acompanhado da esposa, senhora fina, como já não conhecia muitas.
Bons dias, bons dias, bons dias – ia distribuindo os cafés e o sorriso afável de sempre – Sr. Major, como vai o meu amigo ? Dr Pádua, minha senhora... prazer em vê-los...
O cidadão ilustre levantou um pouco o sobrolho e cofiou o farto bigode – ou seja, vinha bem disposto, como o sr. Aparício já descobrira – Meu caro Aparício, obrigado, vamos bem, vamos bem...
Ainda antes de entrar na sala ao lado, já o odor peculiar lhe chegara ( e irritara ) ao nariz.
- Professor Belmiro, bons dias... como vai o senhor ? – e ia colocando o galão escuro, a torrada pouco queimada e os dois bolos de arroz na mesa – já a fumar essa chaminé, logo pela manhã ?
O cliente sorriu-lhe. – Bem vê, sr. Aparício... isto é mais o tempo que demora a fazer do que demora a fumar...
Pois era. Mas mesmo que não fosse, o cliente tinha sempre razão, e portanto não valia a pena argumentar.
- Então pois claro, professor... olhe, aqui tem o seu pequeno almoço, veja lá não deixe esfriar a torrada, assim quentinha é que ela é boa...
E seguiu em direcção ao jardim, para entregar o troco que pousara sobre a bandeja.
Mal entrou, reparou que entrara mais um cliente.
- Dr Silva ? – estranhou ele – O que faz o meu amigo hoje aqui nestas paragens ?
Entregou o troco ao primeiro cliente – moço novo ali na terra, nunca o vira por ali – e acercou-se da mesa onde o recém-chegado se acabara de sentar.
- Bons dias, Aparício... como vais ?
- Muito bem, sr doutor, muito bem... mas bastante admirado por o ver aqui. Ou isto quer dizer aquilo que eu penso que quer dizer ?
O médico Silva lançou-lhe um olhar desconsolado e acenou com a cabeça.
- Pois é isso mesmo que quer dizer, Aparício, é isso mesmo... vou juntar-me ao clube dos irritantes dependentes que querem deixar de ser dependentes, que é como quem diz... vou deixar o vício.
- Pois faz o sr. doutor muito bem, eu cá fazia a mesma coisa, se também tivesse o vício... e o seu pequeno almoço? A mesma coisa de sempre ?

(continua...)

Rolando Palma disse...

O médico acenou novamente com a cabeça e rangeu qualquer coisa entre dentes, a concordar.
O sr. Aparício deslizou até ao balcão e colocou mais duas fatias de pão na torradeira. Ajeitou o moinho de café, tirou um café forte para si mesmo, atirou a louça suja para dentro da máquina e dirigiu-se para a porta do estabelecimento, chávena na mão.
O sol batia na calçada, luminoso.
Nove da manhã e o comércio lá ia abrindo as portas, enquanto os primeiros transeuntes desciam a Rua do Cabrito.
Bebeu o primeiro gole e deixou-o escorregar vagarosamente, garganta abaixo, enquanto observava calmamente a rua.
Formosinho continuava na mesma. Já lá iam uns bons anos, desde que apanhara o trespasse daquele café, e não se arrependia. Os tempos de emigrante já eram uma lembrança distante de outros tempos, em que a idade era outra, as circunstâncias eram outras, até o país era outro...
- Sr Aparício....
Sorriu. A voz inconfundível da D. Hortense trazia-o de novo à realidade, relembrando-o que provávelmente, a sua cliente iria querer um segundo pastel de nata.
Pousou o café inacabado na mesa mais próxima e virou em direcção à sala dos não fumadores.
- D. Hortense... vou já de seguida...

Anónimo disse...

Pelo facto de terem poucas ambições, não esperam demais dos outros nem do tempo nem da vida, seguem-na ao seu ritmo com tanta coisa boa que nós que andamos a correr não conseguimos apreciar...

bjs